Excomungados (parte II)
Por: Isaac Rehl
Por: Isaac Rehl
Questões de Direito
Os meios de comunicação são múltiplos e existem em grande quantidade atualmente, no entanto os espaços para debates mais profundos são raros, pelo que, na maioria das vezes, o que se assiste é um duelo de retóricos, onde se apresentam opiniões e espera-se ter sido convincente. Assim, gostaria de trazer à baila algumas informações que permitirão tornar mais elucidável a “polêmica” que os meios de comunicação de massa fazem questão de deixar em suspenso.
Estão atuando sobre o caso do aborto dos gêmeos na menina estuprada dois direitos distintos, o Canônico e o Civil. Em nosso território nacional, o direito canônico não tem força de lei, mas é ele que regula as ações eclesiásticas, quanto à sua organização, hierarquia e relações com os fiéis. O Direito canônico só pesa sobre um homem que for católico (ele não pode excomungar, por exemplo, quem não é batizado, e, mesmo que pudesse, isso não faria muita diferença para esse homem, a menos que, por isso, ele deixasse de ser aceito numa comunidade, sem poder comprar, vender, trabalhar, etc., mas isso a nossa lei proíbe).
O Código Penal de 1940, Título 1 (Dos crimes contra a pessoa), Capítulo 1 (Dos crimes contra a vida) trata do aborto, criminalizando-o em todas as hipóteses, excetuando-se os casos em que há risco de vida para a mãe e em que a gestação for resultado de estupro. A Constituição de 1988 manteve essas mesmas disposições. Essa brechas criam o que se chama de aborto legal, e, apesar de uma série de propostas apresentadas no legislativo nos últimos 20 anos, agumas no sentido de aumentar, outras no sentido de diminuir as possibilidades de aborto legal, são essas disposições que se mantém. A menina do caso em questão encaixava-se em ambas as categorias.
Mas o direito canônico também é claro, e diz no cânon 1.398:
Quem provoca aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae.
E no cânon 1.314:
O mais das vezes, a pena é ferendae sententiae, não atingindo o réu, a não ser depois de infligida; é latae sententiae, quando nela se incorre pelo simples fato de praticar o delito, se a lei ou preceito assim o estabelecem expressamente.
A pena latae sententiae é aquela que não exige julgamento para ser aplicada, ela é automaticamente infligida no instante em que o delito é cometido. Sendo o aborto, sob quaisquer circunstâncias, um delito, ante o direito canônico, a excomunhão é seu efeito direto e automático. O arcebispo José Cardoso Sobrinho lembrou isso em entrevista ao jornal O Globo. Isto posto, o Estado agiu legitimamente em consentir o aborto, mas a Igreja (e digo isto sendo ateu) também teve legitimidade na postura que adotou, não incorrendo em incoerência. Logo, o arcebispo Dom José Cardos Sobrinho está certo em afirmar que apenas anunciou a excomunhão de pessoas já excomungadas, não podemos culpar um padre por ele ser – católico.
Catolicismo Cultural
O que preocupa é ver o debate seguir por um rumo que parece partir de um pressuposto segundo o qual a excomunhão dos “envolvidos” no aborto faça mesmo alguma diferença do ponto de vista moral, como se a coisa mais importante fosse fazer a Igreja revogar as excomunhões e reconhecer que o aborto foi legítimo, mostrando assim que catolicismo e aborto podem muito bem andar juntos – sendo o contrário um contra-senso da igreja. No entanto, a contradição que se vislumbra é outra: uma contradição entre os princípios doutrinários católicos e a sensibilidade moderna.
Ao refletir sobre o assunto, o mínimo que seja, qualquer pessoa, nascida em nossa sociedade verá mais acerto na ação dos médicos do que na dos padres. O que Lula disse não é nada mais do que a transcrição do senso comum (e numa linguagem ao senso comum mais do que adequada). Fora cristãos militantes do catolicismo, as pessoas, mesmo professando-se católicas, discordam do Direito Canônico sem se darem conta de que isso significa discordarem do que pensam ser a sua fé. E isso se dá porque valores humanistas modernos diluídos na sociedade e introjetados nos indivíduos, valores de bem-estar, de liberdade de escolha, aliados a um prestígio cristalizado e crescente do discurso médico substituíram o antigo poder que a Igreja tinha sobre a sensibilidade das pessoas. Hoje somos mais laicos. Entretanto, ainda não nos sentimos totalmente seguros para fundamentar nossa ética em valores laicos em vez de sagrados, por isso a necessidade da anuência da Igreja, mesmo em coisas em que ela simplesmente não pode anuir sem se autodestruir.
Mas é necessário confrontarmos o problema: ou nossa ética tem por base a Razão ou tem por base a tradição cristã. É essa a questão moral fundamental no caso do aborto e das excomunhões. Não podemos pedir à Igreja que deixe de ser Igreja, tudo o que podemos é fazer nossa cultura deixar de ser católica. Hoje, a excomunhão é a única ameaça legítima que a Igreja pode fazer contra as pessoas caso não a obedeçam – agora que não podem mais fazer fogueiras --, e envolver-se numa luta acirrada em defesa da vida é a única forma de ela recuperar moral num mundo em que periodicamente – e em períodos curtos – se surpreende um padre abusando de algum menino. Por isso ela não pode recuar em sua oposição relativa ao aborto. Mas, quem é favorável ao aborto também o é em defesa da vida e da vida e da liberdade, só que baseado em outros princípios. O que devemos fazer é decidir o que somos, o que faremos. Continuaremos a ser católicos culturais admitindo os princípios inquestionáveis de uma tradição ou vamos assumir de vez a laicidade de nosso direito, de nossa ética e buscar fundamentá-los em princípios racionais (univerais, sim), falíveis, mas questionáveis?
Parece algo muito cataclísmico? A boa notícia é que assumir a racionalidade e a laicidade como fundamentos de nossa ética não implica em desprezo pelas tradições, não implica em ateísmo coletivo ou abandono do sagrado – as tradições ainda são as fontes (friso: fontes, não senhoras) mais seguras de conhecimento quando se trata de moral, e a intuição do sagrado é algo tão fundamental para o desenvolvimento de uma cultura que, sem ela, não poderia haver a poesia e a arte em geral. Mas, isso é assunto para um outro ensaio. No momento, é só.