10 de setembro de 2010

Traição, Sensualidade e Violência: Os Bórgia

,
Isaac Gonçalves Sousa é
poeta, músico e historiador.
Os Bórgia eram uma família de origem espanhola que fez fortuna, prestígio e o pior tipo de fama na Itália renascentista. No final do século XV, o líder do lendário clã era Rodrigo Bórgia, um padre ambicioso que ascendeu a cardeal, aos 16 anos de idade, durante o papado de seu tio, Afonso Bórgia.

Apesar disso, era conhecido por sua virilidade, e possuía uma amante, Giovanna (Vanozza) Catanei, com quem teve seus quatro filhos ilegítimos: Giovanni, César, Lucrécia e Geofredo Bórgia. Posteriormente, tomou como favorita a mulher de Orsino Orsini, um dos mais poderosos representantes de família da península, a jovem e bela Giulia Farnese – reza a lenda que ele a compartilhava com sua filha.

Mas, Rodrigo Bórgia, apesar de ter sido sobrinho de um papa, e ter acumulado grande experiência e fortuna em sua carreira eclesiástica, não acumulou, logo, muito poder em Roma. O que torna um tanto quanto inexplicável (mas apenas um tanto) o fato de ele ter sido eleito Papa pelo conclave de 1492, mesmo tendo como adversários os dois cardeais mais poderosos: Ascanio Sforza e Giuliano della Rovere.

Lucrécia Bórgia, filha de uma puta com um papa, é descrita como uma mulher de beleza exuberante que dançava para os cardeais. Casou-se três vezes; seus dois primeiros maridos morreram em circunstâncias suspeitas, provavelmente assassinados. Sua imagem está relacionada à luxúria, à perversidade e, na maturidade, à filantropia. Tinha na época a fama de envenenadora, e circulavam boatos de uma relação erótica dela com seus irmãos, sobretudo Cezar Bórgia, e com seu pai, o próprio Papa Alexandre III. Mas, seus modos encantadores e habilidades políticas fizeram com que fosse até considerada a Mãe do Povo, na Península Ibérica.

Outro Bórgia famoso é Cézar, o segundo filho, que, como todo segundo filho naquela época, foi destinado pelo pai à carreira religiosa – o pai visava torná-lo seu sucessor no trono de São Pedro. Mas, Cézar sempre mostrou maior interesse pelos assuntos temporais; tinha inclinações militares e foi considerado por Maquiavel o exemplo perfeito do príncipe pragmático, para quem os fins justificam os meios. Abandonou a batina com a morte de seu irmão mais velho, assumindo seu lugar. Poucos duvidam que ele tenha sido o assassino.

Pois bem! Recentemente li a HQ de Milo Manara e Alejandro Jodorowski, intitulada: “Bórgia”. Na minissérie em três capítulos, o roteirista chileno e o desenhista italiano mostram sua versão da história da família, na Renascença. Ali, a intriga, a violência e o sexo rolam soltos e sem julgamentos. Nenhum Bórgia exita antes de matar, mutilar, torturar e manipular através do dinheiro, da intimidação e do sexo.

O objetivo é apresentar a família Bórgia como antecessora dos Corleone – criando uma historia de mafiosos italianos na passagem do século XV para o XVI. Num ponto crucial da trama, no terceiro capítulo, sua santidade Bórgia precisa convencer um astrólogo a fazer previsões a seu favor; e ao ser perguntado sobre como conseguiria isso, ele responde, com um magnífico sorriso duplamente irônico pintado por Manara e com a citação de Puzo e Copola: “Vou lhe fazer uma proposta irrecusável”.

Quando Micheleto, o assassino de estimação de Rodrigo Bórgia, vai como emissário fazer a irrecusável proposta, tem lugar uma cena climática. O astrólogo está transando com uma prostituta dotada das melhores curvas do lápis de Manara; ela senta sobre seu rosto e pede que ele o repugnante velhote a chupe e começa a gemer. O velho astrólogo está em êxtase. De repente ela fica mais pesada, ele a xinga e empurra. Só para ver o corpo decapitado da mulher, a cabeça jovem de cabelos cacheados nas mãos do assassino papal, e um porta voz que lhe faz a proposta do poderoso Bórgia.

A obra parte de uma idéia excelente, e o argumento é impecável. Mas, mesmo tendo tudo para ser magnífica, ela tem um defeito gravíssimo: é demasiadamente curta. Tão curta que uma das principais exigências narrativas não é respeitada por Jodorowski: as personagens não evoluem. Cézar é sempre o mesmo: violento, narcisista e hábil na luta; Lucrécia é sensual e manipuladora; Rodrigo, ambicioso, amoral e cruel. Nenhum deles passa por qualquer tipo de transformação, durante toda a série.

Diferente da saga dos Corleone, em que Michael começa como o mais pacato e ordeiro dos Corleone, para se tornar o maior gangster de sua época; Constanza passa de menina boba que apanha do marido, a mulher promíscua e vulgar, até, amadurecida, tornar-se a consigliere do grande Michael Corleone e, sugestivamente, do seu sucessor, Vincent Corleone. Não é explorada a questão do aprendizado, eles mudam de idade, mas os anos não deixam marcas em suas almas e corpos. Nunca questionam a validade de seus atos, nem seus objetivos. É como se o simples fato de matarem e transarem quando quisessem fosse suficiente para eles, e como se eles já tivessem nascido com esse propósito perfeitamente claro em suas mentes.

O primeiro capítulo é sem dúvida o melhor. Mostra a ascensão de Rodrigo Bórgia a Papa, seu amor por sua família e seus métodos para lidar com inimigos e obstáculos. Numa cena crua e linda, o filho de uma família adversária é enviado ao pai, morto, amarrado a uma armação de madeira, num cavalo, com os olhos arrancados – o rapaz tentara envenenar Rodrigo, e seus filhos. Durante o conclave há uma seqüência digna de Ford Copolla. Rodrigo visita cada um dos cardeais com suas propostas irrecusáveis. A um, jovem e belo, que tinha ganhado sua influência seduzindo 150 padres sodomitas, ele entrega num saco de couro os 150 pênis dos clérigos traidores. A outro, ele mostra a cabeça de seu financiador dentro de uma caixa, afirmando que a fortuna do morto, estava agora sob seu poder. A um cardeal de 95 anos, que nada mais poderia querer ou temer, aparentemente imune a chantagens e ameaças, Rodrigo Bórgia traz sua própria amante, por uma passagem secreta, ordena que ela pratique uma felação (leia-se boquete) no velho, e lhe promete que, se tiver o seu voto, ele terá esse mesmo tratamento sempre que quiser.

Assim, “Bórgia”, de Milo Manara e Alejandro Jodorowski, é uma obra recheada de cenas belas e sujas, um reflexo quadrinhístico de boa qualidade da obra literária de Mario Puzo e do cinema de Francis Ford Copola. Mas, peca por manter muitas das ações dos personagens na superficialidade. Ao tratar dos excessos e da corrupção papal, eles parecem se esquecer que são seres humanos que cometem uns e outros. E que os homens, por mais pragmáticos que sejam, não são máquinas programadas.

Entretanto, apesar deste pequeno problema de ordem filosófica, o quadrinho de Manara e Jodorowski é uma excelente crônica (metafórica) das estruturas religiosas do ocidente. Não apenas da igreja católica, mas de todas as grandes instituições religiosas do mundo. Instituições que, acumulando um imenso capital simbólico e poder disciplinar, tornam-se focos irradiadores dos comportamentos mais hediondos: as traições, as manipulações, a hipocrisia. Se nos Bórgia, a prostituição é praticada em vias de fato, em muitas instituições religiosas, de má fé, o que se prostitui é a consciência. Se Rodrigo Bórgia arranca o olho bom de um caolho apenas porque deseja uma mulher jovem para transar, ainda hoje, são muitas as doutrinas e tradições eclesiásticas que trabalham para cegar as pessoas, em vez de lhes abrirem os olhos. As lutas internas pelo controle das estruturas administrativas: um festival de delações, complôs e calúnias.

O que será, que será? Coisas que são do conhecimento público, mas que ficam apenas sussurradas pelas alcovas, espelhadas em versos e trovas. E que, por fim, passam a história como rumores e boatos sem nenhuma comprovação. A exemplo do incesto de Cézar e Lucrécia Bórgia, da hemofilia do Papa Inocêncio VIII e de tantos outros crimes e desregramentos morais cometidos por figuras respeitáveis e não-repreensíveis.

Se os personagens de Jodorowski não crescem como pessoa, eles mostram a estagnação estrutural das tradições religiosas ocidentais, seus métodos e seus efeitos – embora de forma hiperbólica e literal. Na última capa do último volume da série, está escrito em garrafaisos Bórgia foram a primeira família de mafiosos. Agora, eu me valho dessa linha de continuidade que Jodorowski e Manara esboçaram e afirmo: os Corleone não foram a última.

http://isaac-1.blogspot.com

1 comentários:

  • abril 21, 2013 2:50 da tarde
    Anónimo says:

    This is my first time pay a visit at here and i am really impressed
    to read everthing at alone place.

    my web page: quangngai.net

    delete

Enviar um comentário

Obrigado por sua contribuição!

 

Blog do Renato Meneses Copyright © 2011 -- Template created by O Pregador -- Powered by Blogger